domingo, 4 de maio de 2008

WALKING AROUND

Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
murcho, impenetrável, como um cisne de feltro
navegando numa água de origem e cinza.
O cheiro das barbearias me faz chorar aos gritos.
Só quero um descanso de pedras ou de lá,
só quero não ver mais estabelecimentos nem jardins,
nem mercadorias, nem óculos, nem elevadores.
Acontece que me canso dos meus pés e das minhas unhas
e do meu cabelo e da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
No entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou dar a morte a uma freira com um golpe de orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e dando gritos até morrer de frio.
Não quero continuar sendo raiz nas trevas,
vacilante, estendido, tiritando de sono,
para baixo, nas tripas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, comendo cada dia.
Não quero para mim tantas desgraças.
Não quero continuar de raiz e túmulo,
de subterrâneo solitário, de adega com mortos,
transido, morrendo de pena.
Por isso a segunda-feira arde como o petróleo
quando me vê chegar com a minha cara de cárcere,
e uiva no seu transcurso como roda ferida,
e dá passos de sangue quente para a noite.
E me empurra para certos recantos, para certas casas úmidas,
para hospitais de onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias com cheiro de vinagre,
para ruas horríveis como gretas.
Há pássaros cor de enxofre e horríveis intestinos
pendurados nas portas das casas que odeio
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e espanto,
há guarda-chuvas por todas as partes, e venenos e umbigos.
Eu passeio com calma, com olhos, com sapatos,
com fúria, com esquecimento,
passo, cruzo escritórios e lojas de ortopedia,
e pátios onde há roupas penduradas dum arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.
Pablo Neruda in Residência na Terra II (1935)

Algumas pessoas já receberam esse email, e na verdade eu tava com vontade de falar das minhas crises paradigmáticas karl popperianas, mas Neruda consegue dizer o que sinto bem melhor que eu! ^^'

Natasha


2 comentários:

Jane C.Z. disse...

Beleza de poema, não é mesmo? É meu poema preferido do Neruda.

Volúpias Celestiais disse...

Poema lindo, rapaz ;]