Ainda lembro vagamente das palavras de meu pai pedindo para que eu entrasse no carro. Acho até que minha mãe chorava dizendo que eu seria curado.
Não entendo bem. Eu estava doente? Acho que não. Penso que meus pais estavam me levando embora de casa para que eu não os aborrecesse mais tentanto mostrar a eles um mundo que fingiam não ver. Sei que mamãe não gostava nem um pouco quando eu lhe falava que uma fada queria falar com ela (tive até mesmo que explicar várias vezes para essa fada que minha mãe não era preconceituosa, só um pouco tímida demais).
A viagem foi tranqüila. Observava as árvores altas e a maneira graciosa como os raios solares batiam nelas, enquanto o duende sentado ao meu lado dizia que precisava de muito ouro porque ele estava querendo pedir uma das fadas em casamento. Tenho a ligeira impressão - parando para pensar agora - que ele estava me pedindo auxílio, mas não havia como eu ajudá-lo.
O carro parou. Eu ergui o olhar para ver que estávamos à frente de um local meio esquisito: um muro bem alto e um portão bem grande, parecido com aquele tal do portão do reino dos céus que minha avó tanto falava quando eu era pequeno. Meus pais abriram a porta pra mim e eu saí com o duende. Quando eu entrei no lugar senti que havia chegado mesmo no tal reino. Dei um grande sorriso. Era ali o paraíso! As fadas e os duendes estavam ali também, e flores, e a grama verde, e claro, os anjos. Minha avó se enganou - porque realmente não acredito que ela tenha mentido pra mim: ela achava que os anjos tinham grandes asas. Não tinham. Ou talvez eles só a escondessem debaixo daquela roupa toda branca.
Eu tinha certeza também que a enorme casa que ficava logo atrás dos jardins era afinal a morada de Deus. Lembro de ter procurado-O por todo o tempo em que estive lá, mas só me deparava com os anjos silenciosos e sem resposta alguma.
Eu era feliz ali. Mas houve um dia em que um dos anjos, junto a outros, me levarou a um lugar que eu não tinha ido ainda. Eles me deitaram numa espécie de cama, e aplicaram em mim alguma coisa da qual não me lembro. Apenas sei que acordei muito tempo depois e quando olhei em volta, percebi que tudo mudara.
Os anjos estavam de negro, as flores murcharam, as fadas e os duendes eram escravizados por mais e mais monstros de rostos deformados. Tentei fugir. Tentei gritar. E os anjos negros me trancaram numa cela onde espíritos malignos sussurravam em meu ouvido, às vezes até gritavam. Eu lutei contra as paredes, berrei, e um dia - não lembro quanto tempo se passou - o anjo negro voltou e me levou de novo àquela cama e pensei que fosse voltar ao paraíso. Pensei que por algum motivo havia sido castigado, mas que, naquele momento, seria perdoado.
Me enganei.
Os demônios me conduziam para onde quisessem, já não tinha forças para lutar, mas eles foram sumindo... até que me encontrei num lugar sem anjos, sem demônios... sem fadas. Então, meus pais voltaram e me levaram de volta para casa.
Eu escuto agora, enquanto escrevo nesse papel - que provavelmente será jogado fora como os outros foram -, a conversa de minha mãe com uma amiga que me olha receosa. Elas falam sobre mim. "Ele está assim calado desde quando voltou do hospício...", minha mãe disse à outra.
Hospício? Já ouvira esse nome antes. Não lembro onde. Talvez seja o nome do céu ou do inferno. Mas o nome já não importa. Eu só tenho uma coisa em mente: as fadas, elas nunca voltaram. Queria que elas voltassem.
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Esse texto foi escrito há pouco mais de 2 anos e eu o encontrei quando fui arrumar minhas coisas.Liv